
Cataia? O que é isso?
Um produto considerado típico de Cananéia é a cachaça com cataia, única no Brasil, embora a cataia esteja difundida numa área muito maior, que corresponde aproximadamente a toda a Mata Atlântica do Vale do Ribeira.
A cataia era uma árvore de grande porte (podia chegar a 27 metros de altura, segundo as informações da Embrapa); hoje é um arbusto de pequeno porte, bastante descaracterizado (é realmente difícil distingui-lo dentro da mata). Sua madeira era usada antigamente pelos caiçaras (os habitantes tradicionais da região) como matéria prima para vários trabalhos, entre os quais a fabricação de canoas entalhadas no tronco. Contudo, o atrativo principal da cataia são as propriedades das folhas, que eram usadas na culinária, na farmacopeia e no dia a dia tradicional das comunidades locais.
Por falta de pesquisas científicas, ainda não está claro quais são os benefícios que a cataia acrescenta à pinga, a não ser um gosto marcadamente medicinal, quase de remédio. Os caiçaras são bastante genéricos a respeito, como se fosse uma panaceia para todos os tipos de males (ou será que é a cachaça?). Há relatos (de até uns 20 anos trás) do uso da infusão de cataia no lugar do café, numa época na qual o café não era um produto tão acessível do ponto de vista do abastecimento ou do preço.
Em geral, a infusão ou o chá de cataia era, e é, considerado benéfico para o sistema nervoso, embora os efeitos sejam bastante diferentes, dependendo do metabolismo dos indivíduos: para alguns parece ter um efeito relaxante e até soporífero, para outros, revigorante e até dinamizador.
Num olhar superficial pode-se dizer que as folhas da cataia têm bastante semelhanças com as da erva-mate e da coca. De qualquer forma, todos concordam que as folhas de cataia têm um sabor 'diferente' e agradável, tanto na pinga quanto na comida. "Eu mesmo fui experimentando, e já consegui criar alguns pratos com a cataia - não como ingrediente, mas como especiaria e tempero."
A cataia ameaçada pelo sucesso
A difusão mais ampla da cataia e sua divulgação como elemento chamativo para o turismo se, por um lado, tornou-a conhecida fora do ambiente restrito dos caiçaras, por outro lado pode representar sua condenação. É um processo, aliás, bastante comum, e trágico: quando mais e mais consumidores descobrem um produto peculiar, especialmente se for um bicho ou uma planta selvagem, não criado ou não cultivado, esse corre o risco de um excesso de exploração, e até de extinção. Muitos produtos 'tradicionais' e locais não aguentam um sucesso mais amplo, uma comercialização a nível nacional ou internacional. Nem precisa enumerar a lista quase infinita de árvores ou animais já extintos ou à risco de extinção por terem sido o produto da vez das modas artesanais, ou culinárias. O sucesso dos restaurantes japoneses no mundo todo está determinando a extinção do atum, por exemplo.
A cataia está vivendo um processo análogo, ainda que em surdina. Para poder vender pinga com cataia aos turistas, cada vez mais numerosos em Cananéia, os produtores estão comprando folhas de qualquer origem e proveniência. Por seu lado, muitos caiçaras não conscientizados (mas não só eles) estão arrancado as folhas das cataias (cada vez mais raras) no mangue e na Mata Atlântica, e até arrancando os pés logo que alcançarem uma altura mínima. Aqueles 27 metros ideais da Embrapa? Hoje em dia, podemos festejar quando encontramos uma cataia ainda em pé, ainda com suas folhas, tentando chegar a um metro de altura. Só nos recantos mais afastados, nas alturas das serras, na vastidão do ecossistema Lagamar, a cataia ainda consegue se manter viva.
Vamos salvar a cataia
Aos poucos está surgindo a consciência de que a cataia, transformada em atração comercial e turística, está ameaçada. O que é imprescindível é um manejo sustentável da planta, uma exploração que não seja letal, uma conscientização daqueles que a coletam sobre o perigo de extinção, e um incentivo ao cultivo e manejo sustentável.
Existe um trabalho pioneiro de grande valia, assinado por um grupo de cinco pesquisadoras ligadas à Prefeitura de Cananéia (acredito que não seja por acaso serem todas mulheres...), com o título: PROPOSTA DE PRESERVAÇÃO E TOMBAMENTO DO USO DA CATAIA NO MUNICÍPIO DE CANANÉIA – SP (junho 2012). É interessante notar que o que está sendo proposto, por esse trabalho providencial, é o tombamento do uso, e não da planta, isto é, de todo o conjunto cultural que acompanha a presença da planta naquele contexto sócio-ambiental.
Vale a pena transcrever aqui um dos depoimentos recolhidos na pesquisa, o da Dona Maria do Carmo Ramos, 78 anos.
“Pé grande como a gente tinha no sítio antigamente, hoje você não acha. Você pode até achar pezinho como um araçá. Como pé de planta ali. Mas pé como tinha no sitio que era mata virgem não tem. A mata aqui é mais arvoredo, não existe mais mata virgem. Onde se tem é em mata virgem, é onde não destroem a planta. Pode existir sim por aqui, mas é muito longe. Pé, mas não grande para tirar e fazer uma tábua de carne ou pra lidar com as coisas ou fazer gamela como se fazia antigamente, que hoje em dia não se faz mais essas coisa. ‘Falá’ em gamela, essa molecada já dão risada na cara da gente. Meu pai fazia gamela, a gente era de cachoeira; a gente tomava banho, fazia pra dar banho nas crianças, pra lidar com mandioca, com farinha. A gente fazia farinha e tinha gamela própria de tomar banho e gamela de fazer e ralar mandioca (era feito nessa gamela). A cataia servia pra muitas coisas, por exemplo: a madeira dela, quando a gente morava no sitio, era mata virgem, então tinha muita cataia enorme. Meu pai fazia canoa, gamela, fazia várias coisas, como pilão (a gente socava arroz que era alimentação da gente). A alimentação da gente era arroz. Quando a gente queria quebrar milho, e mesmo para socar café, socava no pilão. Quando a gente tinha, era café torrado; época de descascar o café, socar o café. Quando não tinha café, a gente substituía com chá da cataia. A cataia servia pra fazer xarope, servia pra café e servia para outras coisas. Hoje em dia eles estão acabando, estão mutilando tudo. Eles não sabem cortar fora as folhas, cortam o pau, eles decepam o pau, isso vai acabando porque se você vai matando não pode sobreviver. Se você mata uma planta não pode sobreviver, de que jeito? Como você pode ter uma planta se você tá matando? Então você não pode ter. Então pra que que se vive?”
Nem é um depoimento sobre a cataia, é muito, muito mais, chega a ser uma voz 'eterna', sem tempo, denunciando a perda de identidade, de valores e de produtos valiosos no mundo moderno, sob o efeito autocentrado da (pseudo)cultura moderna, a ponto de destruir tudo o que há em volta. É um depoimento e uma lamentação, como poderiam fazer milhares e milhares de anciãs e anciões no mundo inteiro, nas sociedades e culturas à margem do (pseudo)progresso e da (pseudo)civilização moderna.
Uso sustentável da cataia (no cultivo e na cozinha)
De nossa parte, iremos e já estamos contribuindo para a preservação da cataia, recolhendo mudas e replantando-as na nossa propriedade, tentando cuidar de seu crescimento e bem-estar. Sem a pretensão de vê-las chegar a 27 metros (precisaríamos viver uns 130 anos), mas com a esperança de vê-las pelo menos adultas, sem que ninguém lhes arranque brutalmente os galhos viçosos para perfumar pinga.
Tudo isso não quer dizer, obviamente, que a cataia não deve ser utilizada, na pinga, na farmacologia caiçara e na culinária local, e suas qualidades divulgadas para um público mais amplo. É importante e positivo que, cada vez mais, pessoas conheçam e apreciem as qualidades e as características singelas dessa planta peculiar. O que importa é que cuidemos para que seu uso e utilização não ultrapassem os limites naturais, e a capacidade de reposição do meio ambiente que a produz. Estamos tentando repassar esse tipo de concepção e mentalidade para a comunidade caiçara em volta.
Uma difusão mais ampla das qualidades e características da cataia irá, necessariamente, incentivar pesquisas científicas (até agora apenas esboçadas, como pode se ver no site da Embrapa), e especialmente o cultivo comercial sustentável, aliviando a coleta predatória que é a maior responsável pelo saqueio da cataia e de tantas outras plantas e árvores valiosas. Se tivesse uma produção agrícola e comercial consistente de jacarandá ou outras madeiras de lei, quem iria derrubá-las no fundo da Amazônia, com os custos e os riscos que isso acarreta? Pura utopia, já sei, mas temos de fazer a nossa parte nesse mundo que não quer mais saber da decência.
Então, estou preparando uma série de pratos, para oferecer aos nossos hóspedes, especialmente estrangeiros, nos quais a cataia é um elemento importante, em destaque, sem chegar a ser a protagonista, contudo. A cataia nasceu para ser coadjuvante, aquele personagem ou papel secundário, mas brilhante, que com suas características exalta o verdadeiro protagonista. É assim para a pinga com cataia (o efeito dinamizador das folhas compensa a lerdeza e o peso da bebida), é assim quando é combinada com outros temperos (os tradicionais gnocchi di patate con burro e salvia romanos ficaram bem mais ricos e complexos com a adição da manteiga perfumada por folhas de cataia, por exemplo). A cataia combina muito bem, e exalta suas características, com temperos e sabores 'difíceis', como o gengibre, o salsão ou o alecrim, que geralmente pedem para ser o 'centro' ou a 'estrela' do prato. O próximo passo é aprofundar como a cataia combina com os peixes e frutos do mar da região, para chegarmos a ter um cardápio completo, ainda que sazonal, baseado na cataia.

A cataia era uma árvore de grande porte (podia chegar a 27 metros de altura, segundo as informações da Embrapa); hoje é um arbusto de pequeno porte, bastante descaracterizado (é realmente difícil distingui-lo dentro da mata). Sua madeira era usada antigamente pelos caiçaras (os habitantes tradicionais da região) como matéria prima para vários trabalhos, entre os quais a fabricação de canoas entalhadas no tronco. Contudo, o atrativo principal da cataia são as propriedades das folhas, que eram usadas na culinária, na farmacopeia e no dia a dia tradicional das comunidades locais.
Por falta de pesquisas científicas, ainda não está claro quais são os benefícios que a cataia acrescenta à pinga, a não ser um gosto marcadamente medicinal, quase de remédio. Os caiçaras são bastante genéricos a respeito, como se fosse uma panaceia para todos os tipos de males (ou será que é a cachaça?). Há relatos (de até uns 20 anos trás) do uso da infusão de cataia no lugar do café, numa época na qual o café não era um produto tão acessível do ponto de vista do abastecimento ou do preço.

Num olhar superficial pode-se dizer que as folhas da cataia têm bastante semelhanças com as da erva-mate e da coca. De qualquer forma, todos concordam que as folhas de cataia têm um sabor 'diferente' e agradável, tanto na pinga quanto na comida. "Eu mesmo fui experimentando, e já consegui criar alguns pratos com a cataia - não como ingrediente, mas como especiaria e tempero."
A cataia ameaçada pelo sucesso
A difusão mais ampla da cataia e sua divulgação como elemento chamativo para o turismo se, por um lado, tornou-a conhecida fora do ambiente restrito dos caiçaras, por outro lado pode representar sua condenação. É um processo, aliás, bastante comum, e trágico: quando mais e mais consumidores descobrem um produto peculiar, especialmente se for um bicho ou uma planta selvagem, não criado ou não cultivado, esse corre o risco de um excesso de exploração, e até de extinção. Muitos produtos 'tradicionais' e locais não aguentam um sucesso mais amplo, uma comercialização a nível nacional ou internacional. Nem precisa enumerar a lista quase infinita de árvores ou animais já extintos ou à risco de extinção por terem sido o produto da vez das modas artesanais, ou culinárias. O sucesso dos restaurantes japoneses no mundo todo está determinando a extinção do atum, por exemplo.
A cataia está vivendo um processo análogo, ainda que em surdina. Para poder vender pinga com cataia aos turistas, cada vez mais numerosos em Cananéia, os produtores estão comprando folhas de qualquer origem e proveniência. Por seu lado, muitos caiçaras não conscientizados (mas não só eles) estão arrancado as folhas das cataias (cada vez mais raras) no mangue e na Mata Atlântica, e até arrancando os pés logo que alcançarem uma altura mínima. Aqueles 27 metros ideais da Embrapa? Hoje em dia, podemos festejar quando encontramos uma cataia ainda em pé, ainda com suas folhas, tentando chegar a um metro de altura. Só nos recantos mais afastados, nas alturas das serras, na vastidão do ecossistema Lagamar, a cataia ainda consegue se manter viva.
Vamos salvar a cataia
Aos poucos está surgindo a consciência de que a cataia, transformada em atração comercial e turística, está ameaçada. O que é imprescindível é um manejo sustentável da planta, uma exploração que não seja letal, uma conscientização daqueles que a coletam sobre o perigo de extinção, e um incentivo ao cultivo e manejo sustentável.
Existe um trabalho pioneiro de grande valia, assinado por um grupo de cinco pesquisadoras ligadas à Prefeitura de Cananéia (acredito que não seja por acaso serem todas mulheres...), com o título: PROPOSTA DE PRESERVAÇÃO E TOMBAMENTO DO USO DA CATAIA NO MUNICÍPIO DE CANANÉIA – SP (junho 2012). É interessante notar que o que está sendo proposto, por esse trabalho providencial, é o tombamento do uso, e não da planta, isto é, de todo o conjunto cultural que acompanha a presença da planta naquele contexto sócio-ambiental.
Vale a pena transcrever aqui um dos depoimentos recolhidos na pesquisa, o da Dona Maria do Carmo Ramos, 78 anos.
“Pé grande como a gente tinha no sítio antigamente, hoje você não acha. Você pode até achar pezinho como um araçá. Como pé de planta ali. Mas pé como tinha no sitio que era mata virgem não tem. A mata aqui é mais arvoredo, não existe mais mata virgem. Onde se tem é em mata virgem, é onde não destroem a planta. Pode existir sim por aqui, mas é muito longe. Pé, mas não grande para tirar e fazer uma tábua de carne ou pra lidar com as coisas ou fazer gamela como se fazia antigamente, que hoje em dia não se faz mais essas coisa. ‘Falá’ em gamela, essa molecada já dão risada na cara da gente. Meu pai fazia gamela, a gente era de cachoeira; a gente tomava banho, fazia pra dar banho nas crianças, pra lidar com mandioca, com farinha. A gente fazia farinha e tinha gamela própria de tomar banho e gamela de fazer e ralar mandioca (era feito nessa gamela). A cataia servia pra muitas coisas, por exemplo: a madeira dela, quando a gente morava no sitio, era mata virgem, então tinha muita cataia enorme. Meu pai fazia canoa, gamela, fazia várias coisas, como pilão (a gente socava arroz que era alimentação da gente). A alimentação da gente era arroz. Quando a gente queria quebrar milho, e mesmo para socar café, socava no pilão. Quando a gente tinha, era café torrado; época de descascar o café, socar o café. Quando não tinha café, a gente substituía com chá da cataia. A cataia servia pra fazer xarope, servia pra café e servia para outras coisas. Hoje em dia eles estão acabando, estão mutilando tudo. Eles não sabem cortar fora as folhas, cortam o pau, eles decepam o pau, isso vai acabando porque se você vai matando não pode sobreviver. Se você mata uma planta não pode sobreviver, de que jeito? Como você pode ter uma planta se você tá matando? Então você não pode ter. Então pra que que se vive?”
Nem é um depoimento sobre a cataia, é muito, muito mais, chega a ser uma voz 'eterna', sem tempo, denunciando a perda de identidade, de valores e de produtos valiosos no mundo moderno, sob o efeito autocentrado da (pseudo)cultura moderna, a ponto de destruir tudo o que há em volta. É um depoimento e uma lamentação, como poderiam fazer milhares e milhares de anciãs e anciões no mundo inteiro, nas sociedades e culturas à margem do (pseudo)progresso e da (pseudo)civilização moderna.
Uso sustentável da cataia (no cultivo e na cozinha)

Tudo isso não quer dizer, obviamente, que a cataia não deve ser utilizada, na pinga, na farmacologia caiçara e na culinária local, e suas qualidades divulgadas para um público mais amplo. É importante e positivo que, cada vez mais, pessoas conheçam e apreciem as qualidades e as características singelas dessa planta peculiar. O que importa é que cuidemos para que seu uso e utilização não ultrapassem os limites naturais, e a capacidade de reposição do meio ambiente que a produz. Estamos tentando repassar esse tipo de concepção e mentalidade para a comunidade caiçara em volta.
Uma difusão mais ampla das qualidades e características da cataia irá, necessariamente, incentivar pesquisas científicas (até agora apenas esboçadas, como pode se ver no site da Embrapa), e especialmente o cultivo comercial sustentável, aliviando a coleta predatória que é a maior responsável pelo saqueio da cataia e de tantas outras plantas e árvores valiosas. Se tivesse uma produção agrícola e comercial consistente de jacarandá ou outras madeiras de lei, quem iria derrubá-las no fundo da Amazônia, com os custos e os riscos que isso acarreta? Pura utopia, já sei, mas temos de fazer a nossa parte nesse mundo que não quer mais saber da decência.
Então, estou preparando uma série de pratos, para oferecer aos nossos hóspedes, especialmente estrangeiros, nos quais a cataia é um elemento importante, em destaque, sem chegar a ser a protagonista, contudo. A cataia nasceu para ser coadjuvante, aquele personagem ou papel secundário, mas brilhante, que com suas características exalta o verdadeiro protagonista. É assim para a pinga com cataia (o efeito dinamizador das folhas compensa a lerdeza e o peso da bebida), é assim quando é combinada com outros temperos (os tradicionais gnocchi di patate con burro e salvia romanos ficaram bem mais ricos e complexos com a adição da manteiga perfumada por folhas de cataia, por exemplo). A cataia combina muito bem, e exalta suas características, com temperos e sabores 'difíceis', como o gengibre, o salsão ou o alecrim, que geralmente pedem para ser o 'centro' ou a 'estrela' do prato. O próximo passo é aprofundar como a cataia combina com os peixes e frutos do mar da região, para chegarmos a ter um cardápio completo, ainda que sazonal, baseado na cataia.